domingo, 23 de março de 2008

Citação : do direito de dizer tudo, Altair Martins


"Chego a um fato: sociedade é coisa que nos suicida. A arte, um grito contra o normal."
(imagem: unprofound.com/jim)

sábado, 22 de março de 2008

Desistência


Dedos desacreditados reduzem torradas a farelos que confusamente caem sobre a toalha do café ainda não passado. A xícara - em silêncio - aguarda a água quente que lá no fogão fumega sozinha. Facas e colheres repousam tranqüilas sobre a mesa. A manteiga se derrete vagarosamente, escorrendo sobre a prata que se deixa macular pela gordura amarelada.
As facas permanecem brilhantes, porque não machucam a manteiga. Não há fusão, porque o pó do café não se topa com a água que fumega solitária sobre o fogão. As torradas não se deixam invadir pela manteiga, que sequer às tocam, porque as mesmas agora são migalhas sobre a mesa. O açúcar permanece adormecido na escuridão elegante do açucareiro de prata.
As mãos que há pouco esfarelavam torradas, agora, harmoniosas, buscam unir as migalhas que cravejam a toalha de renda de um café que não aconteceu. O persistente movimento de um vai e vem demorado reúne farelos que nunca mais poderão se coadunar e compor um corpo único. Fragmentados, correspondem a corpos únicos, que mesmo juntos, permanecem apartados por sua individualidade física.
Não há mais torradas, mas ainda há manteiga, portanto, ainda há esperança. A água, embora não fumegue como fumegava, ainda permanece solícita a esperar seu encontro com o pó a ser dissolvido. As facas de uma prata impecavelmente brilhante refletem a luz e o movimento de mãos titubeantes que unidas buscam forças...
Água fria não dissolve café em pó.
Não há torradas para a manteiga.
As facas e colheres ainda brilham de tão limpas.
O açúcar permanece intocável em sua alvura.
Ortodoxamente organizadas em carreiras, formigas vermelhas ocupam-se de remover os farelos da mesa na cozinha em silêncio. Esperançosas, elas livram a toalha de migalhas para que, quem sabe, o próximo café aconteça.