segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

minhas leituras: citação: reflexão: 2008


"Quanto mais me elevo, menor pareço aos olhos daqueles que não sabem voar"

Friedrich Nietzsche

sábado, 24 de novembro de 2007

minhas leituras: citações: reflexão

"As convicções são cárceres."
Friedrich Nietzsche

minhas leituras: citações: reflexão


"A fé é querer ignorar tudo aquilo que é verdade."
Friedrich Nietzsche
(imagem Hana Jakrlova)

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

fragmentos


(...) no despertar de um momento não muito preciso, ela concebe-se livre e, em razão desse sentimento arrebatador que a engole por inteiro a seco, ela ciranda pelo contexto e pelos seres que a circundam, dando-lhes os irreverentes ombros sob a cumplicidade de um largo sorriso cravado no rosto inebriado de emoção (...) olhos abertos, muito abertos e vivos de um verde que se descobre vivo, livre e verde, ela serpenteia mazelas, entregando-se ao movimento envolvente de uma ciranda que a abraça com seus versos (...)
(imagem: unprofound.com/jim)

sábado, 1 de setembro de 2007

Instinto


O mundo a afronta. As pessoas a machucam com palavras perfuro-cortantes. Ela vela feridas em ânsia de cicatrizá-las na umidade de sua saliva. Despe-se de razões e sentimentos e emoções para melhor visualizar as marcas deixadas em corpo-esconderijo da alma em frangalhos. Mapeando feridas vivas de ardência, ela as cobre com o véu grosso do silêncio. Observa o mundo em movimento; as pessoas em atos e fatos. Refugia-se na barra da saia da solidão; busca fôlego e o tempo que sele feridas em pele e indeléveis.

sábado, 25 de agosto de 2007

Retrato


Ana arremessou o seu allstars vermelho contra o antigo televisor do apartamento. Sorte teve Ana, porque o televisor apenas cambaleou com a violência daquele golpe, mas não despencou aos pedaços. A sua vez, a calça jeans foi lançada sobre a cama num só baque, mas sobreviveu ao ato. Agora, já sem sapatos, já sem calça, mas ainda de blusa branca e puída, Ana contempla o movimento da metrópole, o incessante vai e vem, sôfrego, alucinado, insano. Todos vêm e todos vão ao som de um barulho constante e insuportável. Já anoiteceu. As amareladas paredes daquele pequeníssimo apartamento reproduzem as sombras e luzes que contra elas chegam. Sentada no chão da sacada do oitavo andar daquele muquifo, Ana se distrai com o insano trânsito da metrópole que não pára. Ela balança os braços, que despencam pelas frestas da grade da sacada e reflete. Por que o mundo resolvera voltar-se contra ela?
-Talvez porque você tenha se voltado contra o mundo, Ana...
Cansada, ela se deixa arrebatar por pensamentos que vêm desordenados, transtornados, confusos, velozes. Deitada, olhando as estrelas, que naquela noite sequer apareceram, Ana sabe que precisa tomar uma atitude, mas não sabe qual; sabe que tem que fazer algo, mas não sabe o quê. Tenho mesmo que fazer?
-Sim, Ana, tu estás sozinha agora...
A vizinha do lado espia Ana falando sozinha e repentinamente fecha a janela; aquela senhora acha que Ana não é boa gente, fala esquisito, anda esquisito, veste-se de forma esquisita. Ana ignora o barulho da janela fechando em um estrondo e continua a pensar. As primeiras lágrimas vertem quando Ana sente que não será fácil encontrar uma solução. O desespero batera a porta sem sobreaviso, escoltado pelo medo.
- Ana, menina ruiva que se esconde atrás de velhos jeans puídos ao som de Cazuza...
A noite cobre Ana que se rende e adormece no ninar sôfrego de uma metrópole que não pára nem mesmo para velar o sono da menina, cujas ruivas lágrimas secam salgadas na face que espelha confusão de pensamentos.

sábado, 4 de agosto de 2007

Revés




Depois de dias e dias de pequenas cumplicidades, de repente, ela ofereceu-lhe o silêncio...

(...)

Ela furtou-lhe os olhares...

(...)

Ela calou-lhe as palavras...

(...)

Ela ofereceu-lhe sua ausência...

(...)

Mas deixou-lhe as respostas.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Catarse


Em andar distraído não percebo que me dirijo à alameda. Cilada. Logo meus olhos a reconhecem e se prendem a cada pedra que compõe o caminho. Meu olhar se torna fixo e é fuga, porque eu me volto toda ao meu interior habitado por lembranças desfalecidas num canto empoeirado da memória. Quiçá meu olhar fixo é disfarce meditativo, porque eu me ausento do agora. Reanimo lembranças em preto e branco, com as quais dialogo, enquanto passos titubeantes consomem gota a gota o caminho. A metrópole me cerca e pulsa em ritmo frenético, é vai e vem ensandecido, o qual ignoro, porque eu me habito. O diálogo com lembranças é breve, tão abreviado quanto o ato de submetê-las ao moedor do tempo. Ouço, depois discuto. As conduzo, depois miro o pó em monte a que foram reduzidas. O breve percurso vencido em concisos instantes é suficiente para meus olhos compreenderem que se querem livres de lembranças, porque ambicionam acompanhar o vôo bailarino de borboletas. A alameda finda e meu olhar se torna colorido novamente. Atrás de mim, abandono um rastro efêmero de lembranças em pó.
(imagem: unprofound.com/reedy)

sábado, 7 de julho de 2007

Procura de Olhos de Menina


Onde ela estaria? Meus espertos olhos de menina esperta permaneceram durante todo o tempo a procurá-la. Eles percorriam atentamente, ora, faces lacrimejantes, ora, cínicas faces, ora, faces de dor, ora, desprezíveis faces de desprezo, procurando identificá-la entre lágrimas e lamentos. Eu balançava as pernas, porque meus pés não tocavam o chão. Um toco de cigarro, ainda acesso, lutava contra o vento e roubava a atenção de meus espertos olhos de menina dispersa: na caixinha de madeira que guardava areia, localizada próxima do banco no qual eu me encontrava, ora reluziam fagulhas vermelhas, ora ameaçavam apagar...
Eu, desfalecida no alto banco de madeira, brincava de saracotear pernas no ar encharcado de lágrimas e lamúrias. No entanto, logo percebi a movimentação que vinha da sala. Não me interessei em saber o que estava acontecendo, mas logo entendi. Em seguida, fui puxada por uma das mãos; alguém me conduzia e confortava. As pessoas se dispersavam em silêncio, algumas ainda limpavam as lágrimas, outras se abraçavam, todas se despediam. Colocaram-me em um carro que foi lentamente seguindo outros carros em arrastada marcha lenta. Ninguém ousava dizer nada; o silêncio era o tirano do momento. Pelo vidro do carro, eu observava o espanto estampado na face de alguns pedestres com os quais cruzávamos no caminho. A marcha, a qual o automóvel seguia, fez com que, aos poucos, meus olhos espertos de menina exausta se rendessem à sonolência. No entanto, antes que eles pudessem se deixar seduzir pelo sono, o automóvel parou. Descemos todos e seguimos pelo cemitério de altos pinheiros, dos quais choviam pinhas secas e espinhentas. Meus espertos olhos de menina curiosa comparavam os túmulos que se seguiam ao meu atilado olhar, buscando eleger o mais belo... Mas onde ela estaria?
Eu nem percebi quando chegamos. O túmulo já lá estava muito próximo do buraco negro de retangular forma. O monte de terra ruiva e silenciosa aguardava o momento de selar o ato. Meus olhos espertos de menina medrosa se fixaram no buraco negro e passaram a temer. Onde ela estaria?
Lá estava ela. Diante de meus nada espertos olhos de menina amedrontada, ao pé do buraco negro, sorrindo calma, zelando para que tudo fosse até o fim. Diante de sua serenidade, eu apertei a mão que me conduzia, buscando forças para assistir tudo até o fim. Mas não consegui. Cedi ao espetáculo da morte: um frio tomou conta do meu corpo, gelando-me os ossos; as lágrimas explodiram em meus olhos, em um pranto desesperado.
Senti-me fracassada. Dali eu fui arrancada por alguém que tentava me confortar de todas as maneiras. Não consegui assistir até último ato o espetáculo da morte que, certamente, ria de mim, quando deixei para trás, em lágrimas, o cemitério, ao som do vento que açoitava os altos pinheiros que também choravam espinhentas pinhas secas.
(imagem: unprofound.com/jim)

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Ausência Insólita

A chaleira chiou no mesmo horário em que chiava todas as manhãs. Maria derramou o olhar sobre o café em pó depositado no coador; depois a água fervente sobre o pó em espera. A fusão dos elementos exalou um perfume irresistível, que despertou a preguiçosa manhã ainda sonolenta. Maria derramou um pequeno gole de café na boca e tomou o caminho comum de todos os dias, iniciando a procissão não sagrada de todas as manhãs e tardes e noites: do fogão à lenha ao tanque de pedra, do tanque de pedra à tábua de passar roupas, da tábua de passar roupas ao fogão novamente...
Maria cansada de esforço, Maria enfadada da rotina, Maria consumida pelo tempo. Mas no percorrer da procissão prosaica de todos os dias, Maria deparou-se com o insólito: a imagem refletida na superfície de um espelho, cujo brilho era lembrança, a tomou de sobressalto. O andar humilde de pés conformados com o corriqueiro da existência, que arrasta um olhar que não mais se derrama sobre a vida, interrompeu-se diante do abatido espelho. O olhar de Maria derramou-se todo de uma vez só, todo diante da imagem da mulher refletida.
Absorta, Maria deitou um olhar acurado sobre a imagem reproduzida diante de seus olhos... E analisou a mulher-figura diante do espelho. E estendeu um olhar destrutivo sobre o desenho feminino, desmanchando-o, para, logo em seguida, esboçá-lo novamente. E com olhos curiosos, Maria percorreu olhos, nariz, boca, pele, corpo... E com olhos desconhecidos, Maria foi conhecendo a Maria que era. E Maria diante de Maria, afastou pensamentos confusos e quis apenas perceber-se. E com olhos de querer, Maria quis cuidar daquela Maria refletida na superfície gasta de um espelho consumido pelo passado. E com olhos que querem mais que ver, olhos que querem tocar, Maria tocou a Maria do espelho, sentindo sensações incomuns a partir do permitir-se sentir. E com olhos de cuidado, Maria percebeu o quanto Maria precisava de cuidado. E com os olhos do tempo, Maria observou o tempo que passou indelével por pele e corpo marcados. E com olhos de querer-se-bem e com pétalas de bem-me-quer, Maria quis amar-se. E com olhos de esperança derramados todos de uma vez só sobre o espelho combalido, Maria afastou as preocupações prosaicas dos olhos cansados. E com olhos que transbordaram fidelidade, Maria prometeu à Maria refletida o que a ela faltava. Com raro olhar, Maria permaneceu inerte, contemplando o insólito diante do espelho...
(...)
Ao chegarem ao lar, filhos e marido perceberam algo incomum: as roupas ainda dançavam no varal, o tanque de pedra chorava abandono, a comida adormecia ainda. Tudo denunciava a ausência de Maria.
(Imagem: unprofound.com/jim)

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Ratos, Fios, Vozes


Ratos imundos para todos os lados em fuga. O rangido do velho portão de ferro, já enferrujado pelos fios dos anos, que assim rangeu por anos a fio, anunciou que o homem chegava mais cedo ao lar. O roer dos fios das horas foi interrompido pelo abrir da porta. O homem intrigado, com olhos apertados de preocupação, preocupação que marcava a pele já marcada pelos fios tecidos pelos anos, roia-se por dentro... Qual o propósito do fio de voz sufocada, que ressoava continuamente dentro de si, preenchendo-o, aliciando-o, enlouquecendo-o?
Ratos imundos de todas as quinas em silêncio. O lar em silêncio se ocupava de escutar o fio de voz sufocada, que sufocava o homem com fios de angústia que lhe trançavam a carne. O silêncio era cúmplice daquela voz que, mesmo sufocada, se fazia escutar nos quatro cantos da morada. O silêncio silenciava, inclusive, a vida que passava além dos quatro cantos da casa, dando ênfase ao propósito do fio de voz que emergia das profundezas do homem que, agora, roia unhas roídas até a carne.
Ratos imundos por todos os cantos em assombro. O nó da gravata desfez-se, mas não o nó da garganta. Os sapatos foram arremessados ao longe, delineando piruetas no ar pesado de angústia. Angústia exalada pelo homem, que respirava angústia em fios, que já havia se entrelaçado a músculos e carne. Em um único e violento golpe, o homem arremessou o celular contra aquela loucura, abismando ratos que roíam queijos apodrecidos pelo tempo. As sóbrias roupas- que faziam daquele ser um homem respeitável aos olhos do mundo- desfaleceram num dos cantos do lar tecido a silêncio. O homem passou a mão em uma velha calça jeans e estourou a porta, selando-a com gotas de uma angústia suada, sedenta de palavras.
Ratos de todas as arestas no aconchego de tocas imundas. O ser masculino de passos descalços e angustiados foi ao encontro de vozes que libertassem o fio de voz sufocada, que lhe fervia o sangue, lhe tecia feridas na boca do estômago, lhe roia a lucidez dos sentidos. O corpo em arrebatamento seguia a uma senda já tramada, que o homem perpassava com determinação por acreditar que o fio de voz sufocada lhe levaria ao fio da meada da charada que continuamente ressoava em sua inteligência. Em passos de pés descalços que dispensaram a proteção de sapatos simplesmente porque não sentiam os atritos que os faziam machucados pelo caminho, o homem seguia acompanhado do fio de voz que alinhavava angústia ao nó da garganta seca de saliva.
Ratos imundos velaram a ausência do homem. Os passos de pés descalços e machucados começaram a se amansar quando o olfato foi tocado pela salinidade do mar. Serpenteando o calçadão, o homem ignorava as vidas alheias que o circundavam. Ao som da voz oculta, ao sabor salgado daquela atmosfera, ele afundava os pés em uma areia áspera e morna, propondo-se a uma respiração profunda e lenta. Respirava ainda angústia, mas, aos poucos, desatava o nó da garganta, destramando os fios intrigados por anos a fio. Seus olhos se encheram com a imensidão do mar, iluminado pelo fulgor de uma lua não cheia, porém incandescente e sedutora. Sentiu que diante daquela vastidão tecida por Deus com fios de água e terra, teria força e voz para libertar o fio de voz sufocada que queria zunir aos gritos na imensa imensidão daquela colcha azul engendrada entre rochas. O persistente vai e vem das ondas, rainhas de um mar que as coroava com espuma cintilante e efêmera, ia serenando o aflito espírito do homem que, de joelhos, quis perder o bom senso, a razão, o juízo...
Imundos ratos em sobressalto: gritos ressoaram angustiadamente nos quatro cantos da praia; eram derradeiras vozes que libertavam fios de vozes tecidas a angústia, angústia aprisionada em corpo de homem. O homem, pela última vez, foi visto entregando-se as ondas do mar, que de suas profundezas regozijou um corpo mortificado, porém sereno e tranqüilo. A angústia arrancada fio a fio de músculos e carne, agora, agitava as ondas daquele mar, que as laureava com uma abundante espuma cintilante e efêmera.
Ratos vindos de toda a vizinhança quebraram o silêncio do lar em abandono. A rataria roeu os últimos fios de angústia alinhavados nas roupas desfalecidas próximas a tocas imundas.
(imagem: unprofound.com/moktar)

domingo, 20 de maio de 2007

Citação: do direito de dizer tudo, Altair Martins

"Sem que haja ousadia, não posso acreditar que a arte chegue a algum lugar diferente do comum. E tenho medo: esqueceram que a ousadia da literatura passa pela palavra."
Trecho do texto "do direito de dizer tudo"
Professor e Escritor Altair Martins
(ver em links)

domingo, 13 de maio de 2007

Panacéia (miniconto)

Perdeu a hora, o ônibus, o ganha pão. Engoliu o choro. Bebeu as desgraças. Reconheceu como sua a embriagada dignidade desmaiada no fundo da garrafa. Resgatou-a aos tropeços.

sábado, 12 de maio de 2007

Tecedura (miniconto)

Tecendo encontros tramados, entrelacei o teu olhar ao meu... Depois boca, pele e suor. Mas nossas mazelas em intriga desalinhavaram o nós. Teceram o eu sem ti.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Tarde Demais (miniconto)

Ao paladar asqueroso da saliva de uma morte que não se anuncia, a dama que a mulher não foi desfalece no pulsar de desejos de uma vida menos ordinária.

Clichê (miniconto)

Ele deixa-se esbofetear. Sabe-se culpado. Mas nega. Será inocente até que a morte os separe, até que a verdade seja asfixiada pelos punhos do cinismo. Ela? Deixa-se lograr entre carícias e mentiras.
O miniconto foi elaborado a partir do desafio proposto pela Unisinos em seu DESAFIO LITERÁRIO (ver em links): escrever um conto com no máximo 200 caracteres... Escrito e enviado a página da universidade, o miniconto me rendeu um comentário elogioso de uma leitora, jornalista e jovem escritora- que virou amiga- da Bahia de todos os santos!

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Ritual

Conto pré-selecionado no 4° Concurso de Contos e Poesias da Editora Guemanisse (RJ)

Ela observava as próprias mãos. E que belas mãos as daquela mulher. Em um instante, já estava com mechas de algodão empapuçadas de acetona. Um pouco trêmula, àquela mulher chorosa esfregava o algodão nas unhas. E que belas unhas. Esfregava, esfregava, esfregava e, aos poucos, ela visualizava o que há muito não via: ela própria, nua, sem artifícios, sem fetiches, sem fantasias.
Escorria-lhe pelo punho o excesso de acetona. Mas ela nada sentia, apenas continuava. Em minutos, a primeira mão já se livrara da cor infame; um sentimento de alívio arrebatou a mulher que, naquele momento, só queria livrar-se do vermelho. A cor não a sintetizava. Ao contrário, fazia-lhe mal. Em sua concentração, ela nem notara que a acetona estava no fim. O pouco líquido que o frasco ainda continha era seu antídoto ao veneno rubro.
Melhor dizendo, aquela mulher não odiava o vermelho: odiava o que o encarnado a fazia recordar. Tinha pressa, muita pressa de desembaraçar-se daquela nuança, que lhe tomava as unhas, o corpo, a memória. Ao acabar de retirar o esmalte, ainda que ligeiramente, sentia-se despida e ali estava como nunca: frágil, confusa, acuada.
Um misto de alívio e esperança tomou conta daquela mulher e seus olhos de lágrimas. Estaria livre de suas lembranças? Ela queria ser livre. Desejava desnudar-se por inteiro, abandonando máscaras e subterfúgios. Mas ele ainda estava ali.
Na penumbra da sala, ela fitava as suas mãos como se as notasse pela primeira vez. Com o olhar contemplativo, ela percebia como suas unhas estavam manchadas. Não adiantaria tentar remover as nódoas naquele momento; ela sabia que só o tempo poderia apagá-las de suas unhas, tornando-as, novamente, cândidas e límpidas. Entretanto, ela sentia que ainda restava algo a fazer.
Transtornada, a mulher despejava seu pranto sobre as unhas manchadas. E o espelho, aprisionado em uma velha moldura dourada, único adorno fixado nas paredes daquela casa, reproduzia a cena em sua superfície, transformando-se em obra viva.
Entre soluços, a mulher resgatou o resquício de ânimo que ainda habitava o seu espírito: era preciso ir até o fim. Ela desejava ir até o fim. Lentamente, caminhando a passos titubeantes, ela enfrentou o silencioso corredor que dava acesso ao quarto. Suas mãos seguiram amparando-se nas paredes. Ao chegar, ligou a luz e fitou o cômodo, buscando nos móveis que o guarneciam encontrar a identidade da mulher que o habitava. O pó se depositava sobre os móveis velhos e rústicos e evidenciava o abandono do lar. Onde ele estaria? Na gaveta da cômoda? No criado-mudo? No baú ao lado da cama? Nas velhas caixas de sapato?
A mulher escorou a cabeça no marco da porta e descansou o olhar sobre o aposento. Um elegante vidro de perfume, em forma de um curvilíneo corpo de mulher, disposto sobre a antiga cômoda, lhe distraiu por alguns instantes. Mas lá estava ele: sobre a escrivaninha há muito não usada, entre cartas amareladas e bilhetes consumidos pelo tempo. A pequena caixa forrada por um tecido nobre guardava-o. Abriria a caixa ou livrar-se-ia dela sem sequer vê-lo novamente?
A mulher retornou à sala com a caixa pressionando-lhe o peito. Por frações de segundo, parou e contemplou os punhados de algodão usados pelo chão; teve certeza de que precisava fazer aquilo. A mulher depositou a caixa no parapeito da janela e permitiu-se sentir o vento que embalava a madrugada. A aragem acariciava-lhe a face; secavam, assim, as lágrimas que insistiam em desabar de seus olhos vermelhos e desesperados, que um dia foram castanhos e ávidos. O rosto sob os afagos do vento, o silêncio como música, a madrugada como pano de fundo: o espírito aflito encontrava um efêmero consolo.
A cidade estava quieta, sinistra. Do outro lado da rua, um gato melindroso, pronto para a fuga, observava os movimentos da mulher. Seus olhos contrastavam com o negríssimo da noite e eram os únicos que testemunhavam o momento. Inerte, permaneceu o bichano a observá-la. A chuva era anunciada pela intensidade do vento, cujo sopro era persistente.
A mulher fechou os olhos e quis sentir. Apenas sentir. O gatuno já havia desaparecido na escuridão do beco. A mulher estava, portanto, sozinha.
Chegara a hora. A mulher abriu vagarosamente a caixa sob a parca luz que vinha de um poste da alameda. Ela retirou o vidro e abriu-o. Por um segundo, a mulher experimentou a coragem de enfrentar suas lembranças. Mas era tarde: elas escoaram pela noite juntamente com o pigmento vermelho que era lentamente liberado do vidro. A ventania encarregava-se de o levar; era essa a sua função. Estava, pois, a noite tingida pelo vermelho.
Por derradeiro, a mulher lavou as mãos. Lavou-as novamente, era preciso. Ela cumpria, assim, seu ritual de purificação.