quarta-feira, 9 de maio de 2007

Ritual

Conto pré-selecionado no 4° Concurso de Contos e Poesias da Editora Guemanisse (RJ)

Ela observava as próprias mãos. E que belas mãos as daquela mulher. Em um instante, já estava com mechas de algodão empapuçadas de acetona. Um pouco trêmula, àquela mulher chorosa esfregava o algodão nas unhas. E que belas unhas. Esfregava, esfregava, esfregava e, aos poucos, ela visualizava o que há muito não via: ela própria, nua, sem artifícios, sem fetiches, sem fantasias.
Escorria-lhe pelo punho o excesso de acetona. Mas ela nada sentia, apenas continuava. Em minutos, a primeira mão já se livrara da cor infame; um sentimento de alívio arrebatou a mulher que, naquele momento, só queria livrar-se do vermelho. A cor não a sintetizava. Ao contrário, fazia-lhe mal. Em sua concentração, ela nem notara que a acetona estava no fim. O pouco líquido que o frasco ainda continha era seu antídoto ao veneno rubro.
Melhor dizendo, aquela mulher não odiava o vermelho: odiava o que o encarnado a fazia recordar. Tinha pressa, muita pressa de desembaraçar-se daquela nuança, que lhe tomava as unhas, o corpo, a memória. Ao acabar de retirar o esmalte, ainda que ligeiramente, sentia-se despida e ali estava como nunca: frágil, confusa, acuada.
Um misto de alívio e esperança tomou conta daquela mulher e seus olhos de lágrimas. Estaria livre de suas lembranças? Ela queria ser livre. Desejava desnudar-se por inteiro, abandonando máscaras e subterfúgios. Mas ele ainda estava ali.
Na penumbra da sala, ela fitava as suas mãos como se as notasse pela primeira vez. Com o olhar contemplativo, ela percebia como suas unhas estavam manchadas. Não adiantaria tentar remover as nódoas naquele momento; ela sabia que só o tempo poderia apagá-las de suas unhas, tornando-as, novamente, cândidas e límpidas. Entretanto, ela sentia que ainda restava algo a fazer.
Transtornada, a mulher despejava seu pranto sobre as unhas manchadas. E o espelho, aprisionado em uma velha moldura dourada, único adorno fixado nas paredes daquela casa, reproduzia a cena em sua superfície, transformando-se em obra viva.
Entre soluços, a mulher resgatou o resquício de ânimo que ainda habitava o seu espírito: era preciso ir até o fim. Ela desejava ir até o fim. Lentamente, caminhando a passos titubeantes, ela enfrentou o silencioso corredor que dava acesso ao quarto. Suas mãos seguiram amparando-se nas paredes. Ao chegar, ligou a luz e fitou o cômodo, buscando nos móveis que o guarneciam encontrar a identidade da mulher que o habitava. O pó se depositava sobre os móveis velhos e rústicos e evidenciava o abandono do lar. Onde ele estaria? Na gaveta da cômoda? No criado-mudo? No baú ao lado da cama? Nas velhas caixas de sapato?
A mulher escorou a cabeça no marco da porta e descansou o olhar sobre o aposento. Um elegante vidro de perfume, em forma de um curvilíneo corpo de mulher, disposto sobre a antiga cômoda, lhe distraiu por alguns instantes. Mas lá estava ele: sobre a escrivaninha há muito não usada, entre cartas amareladas e bilhetes consumidos pelo tempo. A pequena caixa forrada por um tecido nobre guardava-o. Abriria a caixa ou livrar-se-ia dela sem sequer vê-lo novamente?
A mulher retornou à sala com a caixa pressionando-lhe o peito. Por frações de segundo, parou e contemplou os punhados de algodão usados pelo chão; teve certeza de que precisava fazer aquilo. A mulher depositou a caixa no parapeito da janela e permitiu-se sentir o vento que embalava a madrugada. A aragem acariciava-lhe a face; secavam, assim, as lágrimas que insistiam em desabar de seus olhos vermelhos e desesperados, que um dia foram castanhos e ávidos. O rosto sob os afagos do vento, o silêncio como música, a madrugada como pano de fundo: o espírito aflito encontrava um efêmero consolo.
A cidade estava quieta, sinistra. Do outro lado da rua, um gato melindroso, pronto para a fuga, observava os movimentos da mulher. Seus olhos contrastavam com o negríssimo da noite e eram os únicos que testemunhavam o momento. Inerte, permaneceu o bichano a observá-la. A chuva era anunciada pela intensidade do vento, cujo sopro era persistente.
A mulher fechou os olhos e quis sentir. Apenas sentir. O gatuno já havia desaparecido na escuridão do beco. A mulher estava, portanto, sozinha.
Chegara a hora. A mulher abriu vagarosamente a caixa sob a parca luz que vinha de um poste da alameda. Ela retirou o vidro e abriu-o. Por um segundo, a mulher experimentou a coragem de enfrentar suas lembranças. Mas era tarde: elas escoaram pela noite juntamente com o pigmento vermelho que era lentamente liberado do vidro. A ventania encarregava-se de o levar; era essa a sua função. Estava, pois, a noite tingida pelo vermelho.
Por derradeiro, a mulher lavou as mãos. Lavou-as novamente, era preciso. Ela cumpria, assim, seu ritual de purificação.

2 comentários:

Anônimo disse...

É um conto que transcendeu o papel e me atingiu, por me conduzir a entrar na situação e sentir os sentimentos descritos, por fazer minha imaginação querer uma continuação que seria própria das suas sensações, despertadas na leitura. Surpreendente!

Anônimo disse...

Te conheço e gosto tanto de ti que tenho orgulho do meu próprio sentimento. Mas, além disso, meus olhos enxergam teu dom. Te dedica a essa vontade de escrever. Segue adiante, eu vou contigo, te acompanho com a minha leitura!