quarta-feira, 6 de junho de 2007

Ausência Insólita

A chaleira chiou no mesmo horário em que chiava todas as manhãs. Maria derramou o olhar sobre o café em pó depositado no coador; depois a água fervente sobre o pó em espera. A fusão dos elementos exalou um perfume irresistível, que despertou a preguiçosa manhã ainda sonolenta. Maria derramou um pequeno gole de café na boca e tomou o caminho comum de todos os dias, iniciando a procissão não sagrada de todas as manhãs e tardes e noites: do fogão à lenha ao tanque de pedra, do tanque de pedra à tábua de passar roupas, da tábua de passar roupas ao fogão novamente...
Maria cansada de esforço, Maria enfadada da rotina, Maria consumida pelo tempo. Mas no percorrer da procissão prosaica de todos os dias, Maria deparou-se com o insólito: a imagem refletida na superfície de um espelho, cujo brilho era lembrança, a tomou de sobressalto. O andar humilde de pés conformados com o corriqueiro da existência, que arrasta um olhar que não mais se derrama sobre a vida, interrompeu-se diante do abatido espelho. O olhar de Maria derramou-se todo de uma vez só, todo diante da imagem da mulher refletida.
Absorta, Maria deitou um olhar acurado sobre a imagem reproduzida diante de seus olhos... E analisou a mulher-figura diante do espelho. E estendeu um olhar destrutivo sobre o desenho feminino, desmanchando-o, para, logo em seguida, esboçá-lo novamente. E com olhos curiosos, Maria percorreu olhos, nariz, boca, pele, corpo... E com olhos desconhecidos, Maria foi conhecendo a Maria que era. E Maria diante de Maria, afastou pensamentos confusos e quis apenas perceber-se. E com olhos de querer, Maria quis cuidar daquela Maria refletida na superfície gasta de um espelho consumido pelo passado. E com olhos que querem mais que ver, olhos que querem tocar, Maria tocou a Maria do espelho, sentindo sensações incomuns a partir do permitir-se sentir. E com olhos de cuidado, Maria percebeu o quanto Maria precisava de cuidado. E com os olhos do tempo, Maria observou o tempo que passou indelével por pele e corpo marcados. E com olhos de querer-se-bem e com pétalas de bem-me-quer, Maria quis amar-se. E com olhos de esperança derramados todos de uma vez só sobre o espelho combalido, Maria afastou as preocupações prosaicas dos olhos cansados. E com olhos que transbordaram fidelidade, Maria prometeu à Maria refletida o que a ela faltava. Com raro olhar, Maria permaneceu inerte, contemplando o insólito diante do espelho...
(...)
Ao chegarem ao lar, filhos e marido perceberam algo incomum: as roupas ainda dançavam no varal, o tanque de pedra chorava abandono, a comida adormecia ainda. Tudo denunciava a ausência de Maria.
(Imagem: unprofound.com/jim)

5 comentários:

Unknown disse...

Que bom o contato que fizeste. Achei seu comentário superlindo e seu blog de igual maneira. Estou num instante tão Maria...identificação verdadeira.
Voltarei aqui mais vezes sim, com certeza e devolvo a admiração!
Um abraço, Mônica

Ana Fernanda disse...

Moça, quase deu pra sentir o cheiro e o gosto de café de Maria nos primeiros parágrafos do texto!

e a fuga... você leu o conto do Carpinejar, da mulher que fugiu com o vizinho? Nós, mulheres, precisamos fugir. Ou melhor: precisamos nos achar. E nem sempre estamos no lugar em que estamos.

Um beijo!

Anônimo disse...

Linddooooooooooooooo...
Parabéns teu texto está marvilhoso!!Parece que as personagens são até de verdade!! Quando comecei a ler me perdi no pensamento, e me dei conta que estava vendo o cenário do texto: o taque, o varal, o café...
Serei, com certeza, uma visitante assídua do teu blog, mas principalmente uma fã!!!
Bjão. Sucesso!!!
Ju Patel.

Anônimo disse...

Sem palavras ... Cacá!!
És uma escritora nata, fico até envergonhada de deixar esse simples comentário pois, não domino as palavras com esse dom.
Parabéns, me orgulho muito de ti!!
Beijos...vou ler sempre agora.
Luca

Anônimo disse...

Oi,linda filha minha.Tu me enchesde orgulho ,pois de aonde vem tanto talento?Sim.....eu sei das tuas leituras,que quando te procurávamos estavas por algum canto dessa nossa casa lendo...e lendo autores maravilhosos.Parabéns ...da mamãe que muito te ama e...se orgulha muuuuuuuuuuuito de ti.Beijão.