sexta-feira, 1 de junho de 2007

Ratos, Fios, Vozes


Ratos imundos para todos os lados em fuga. O rangido do velho portão de ferro, já enferrujado pelos fios dos anos, que assim rangeu por anos a fio, anunciou que o homem chegava mais cedo ao lar. O roer dos fios das horas foi interrompido pelo abrir da porta. O homem intrigado, com olhos apertados de preocupação, preocupação que marcava a pele já marcada pelos fios tecidos pelos anos, roia-se por dentro... Qual o propósito do fio de voz sufocada, que ressoava continuamente dentro de si, preenchendo-o, aliciando-o, enlouquecendo-o?
Ratos imundos de todas as quinas em silêncio. O lar em silêncio se ocupava de escutar o fio de voz sufocada, que sufocava o homem com fios de angústia que lhe trançavam a carne. O silêncio era cúmplice daquela voz que, mesmo sufocada, se fazia escutar nos quatro cantos da morada. O silêncio silenciava, inclusive, a vida que passava além dos quatro cantos da casa, dando ênfase ao propósito do fio de voz que emergia das profundezas do homem que, agora, roia unhas roídas até a carne.
Ratos imundos por todos os cantos em assombro. O nó da gravata desfez-se, mas não o nó da garganta. Os sapatos foram arremessados ao longe, delineando piruetas no ar pesado de angústia. Angústia exalada pelo homem, que respirava angústia em fios, que já havia se entrelaçado a músculos e carne. Em um único e violento golpe, o homem arremessou o celular contra aquela loucura, abismando ratos que roíam queijos apodrecidos pelo tempo. As sóbrias roupas- que faziam daquele ser um homem respeitável aos olhos do mundo- desfaleceram num dos cantos do lar tecido a silêncio. O homem passou a mão em uma velha calça jeans e estourou a porta, selando-a com gotas de uma angústia suada, sedenta de palavras.
Ratos de todas as arestas no aconchego de tocas imundas. O ser masculino de passos descalços e angustiados foi ao encontro de vozes que libertassem o fio de voz sufocada, que lhe fervia o sangue, lhe tecia feridas na boca do estômago, lhe roia a lucidez dos sentidos. O corpo em arrebatamento seguia a uma senda já tramada, que o homem perpassava com determinação por acreditar que o fio de voz sufocada lhe levaria ao fio da meada da charada que continuamente ressoava em sua inteligência. Em passos de pés descalços que dispensaram a proteção de sapatos simplesmente porque não sentiam os atritos que os faziam machucados pelo caminho, o homem seguia acompanhado do fio de voz que alinhavava angústia ao nó da garganta seca de saliva.
Ratos imundos velaram a ausência do homem. Os passos de pés descalços e machucados começaram a se amansar quando o olfato foi tocado pela salinidade do mar. Serpenteando o calçadão, o homem ignorava as vidas alheias que o circundavam. Ao som da voz oculta, ao sabor salgado daquela atmosfera, ele afundava os pés em uma areia áspera e morna, propondo-se a uma respiração profunda e lenta. Respirava ainda angústia, mas, aos poucos, desatava o nó da garganta, destramando os fios intrigados por anos a fio. Seus olhos se encheram com a imensidão do mar, iluminado pelo fulgor de uma lua não cheia, porém incandescente e sedutora. Sentiu que diante daquela vastidão tecida por Deus com fios de água e terra, teria força e voz para libertar o fio de voz sufocada que queria zunir aos gritos na imensa imensidão daquela colcha azul engendrada entre rochas. O persistente vai e vem das ondas, rainhas de um mar que as coroava com espuma cintilante e efêmera, ia serenando o aflito espírito do homem que, de joelhos, quis perder o bom senso, a razão, o juízo...
Imundos ratos em sobressalto: gritos ressoaram angustiadamente nos quatro cantos da praia; eram derradeiras vozes que libertavam fios de vozes tecidas a angústia, angústia aprisionada em corpo de homem. O homem, pela última vez, foi visto entregando-se as ondas do mar, que de suas profundezas regozijou um corpo mortificado, porém sereno e tranqüilo. A angústia arrancada fio a fio de músculos e carne, agora, agitava as ondas daquele mar, que as laureava com uma abundante espuma cintilante e efêmera.
Ratos vindos de toda a vizinhança quebraram o silêncio do lar em abandono. A rataria roeu os últimos fios de angústia alinhavados nas roupas desfalecidas próximas a tocas imundas.
(imagem: unprofound.com/moktar)

Um comentário:

Raiça Bomfim disse...

A cada linha um enrolar de sentidos... Me veio a tona a sutileza dos nossos emaranhados, dos limites tênues e irreversíveis dessa vida nossa. E esse roer de ratos, essas ruínas... Ai, deus...

Abraço ensolarado (finalmente a chuva deu uma trégua por essas bandas e o calor voltou com tudo) de sua amiga baiana.