sábado, 25 de agosto de 2007

Retrato


Ana arremessou o seu allstars vermelho contra o antigo televisor do apartamento. Sorte teve Ana, porque o televisor apenas cambaleou com a violência daquele golpe, mas não despencou aos pedaços. A sua vez, a calça jeans foi lançada sobre a cama num só baque, mas sobreviveu ao ato. Agora, já sem sapatos, já sem calça, mas ainda de blusa branca e puída, Ana contempla o movimento da metrópole, o incessante vai e vem, sôfrego, alucinado, insano. Todos vêm e todos vão ao som de um barulho constante e insuportável. Já anoiteceu. As amareladas paredes daquele pequeníssimo apartamento reproduzem as sombras e luzes que contra elas chegam. Sentada no chão da sacada do oitavo andar daquele muquifo, Ana se distrai com o insano trânsito da metrópole que não pára. Ela balança os braços, que despencam pelas frestas da grade da sacada e reflete. Por que o mundo resolvera voltar-se contra ela?
-Talvez porque você tenha se voltado contra o mundo, Ana...
Cansada, ela se deixa arrebatar por pensamentos que vêm desordenados, transtornados, confusos, velozes. Deitada, olhando as estrelas, que naquela noite sequer apareceram, Ana sabe que precisa tomar uma atitude, mas não sabe qual; sabe que tem que fazer algo, mas não sabe o quê. Tenho mesmo que fazer?
-Sim, Ana, tu estás sozinha agora...
A vizinha do lado espia Ana falando sozinha e repentinamente fecha a janela; aquela senhora acha que Ana não é boa gente, fala esquisito, anda esquisito, veste-se de forma esquisita. Ana ignora o barulho da janela fechando em um estrondo e continua a pensar. As primeiras lágrimas vertem quando Ana sente que não será fácil encontrar uma solução. O desespero batera a porta sem sobreaviso, escoltado pelo medo.
- Ana, menina ruiva que se esconde atrás de velhos jeans puídos ao som de Cazuza...
A noite cobre Ana que se rende e adormece no ninar sôfrego de uma metrópole que não pára nem mesmo para velar o sono da menina, cujas ruivas lágrimas secam salgadas na face que espelha confusão de pensamentos.

3 comentários:

Anônimo disse...

Adorei esse conto, muito bem escrito, parabéns!!
Bjão...
Ju/Cachoeira do Sul/RS

Espatódea disse...

È somos Ana, somos crianças, somos mulheres... E essa cidade intranquila consumindo-nos madrugada adentro! Também me pergunto: Que fazer? Tem que fazer? Resta-nos ainda as canções...

Ramon de Alencar disse...

...
-´´Ana´´ me fez lembrar a ´´Clara´´, uma que se criou num conto(Entardecer). Gostaria de apresentá-la a ti algum dia.

...
-Ademais, tão vivo teu conto que conto quantas vezes o que conta...